"Sempre fui uma artista na fronteira da tradição"

Mayra Andrade regressa a Portugal e será um dos cabeças de cartaz da sexta edição do Misty Fest
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A cantora que muitos já apontam como a sucessora natural de Cesária Évora nasceu em Cuba e passou a infância a saltitar por países como Senegal, Angola, Alemanha e Cabo Verde. Uma realidade global que abriu os horizontes da sua música, aberta ao mundo mas moldada pela tradição de Cabo Verde. No seu quarto álbum, Lovely Difficult (2013), juntam-se elementos do jazz e da pop, com ritmos de outras latitudes, num universo musical muito próprio que dá verdadeiro sentido à expressão música do mundo. É este disco que a cantora cabo-verdiana vem de novo apresentar ao Misty Fest, em três concertos que coincidem com a mudança para Portugal, depois de 14 anos a viver em Paris.

O que podemos esperar destes concertos? Já irá apresentar material novo, tendo em conta que o último disco, Lovely Difficult, já é de 2013?

Comecei a digressão Lovely Difficult em Portugal, em novembro de 2013, precisamente no CCB, e em dois anos este espetáculo melhorou muito. Os arranjos evoluíram, ganharam outra consistência e maturidade. Basicamente vou tocar o último disco e algumas das músicas mais conhecidas dos primeiros álbuns. A maior novidade, até porque pretendia apresentar algo diferente, é a presença de dois convidados, que são a Sara Tavares e o Pedro Moutinho. Tenho muita sorte, porque não é sempre que se tem a oportunidade de passar duas vezes pelo mesmo local com o mesmo espetáculo e ter um público disposto a ouvir-nos.

Dois anos depois, como é que essa evolução se sente?

Impõe-se naturalmente, porque temos todos, eu e os músicos, vontade de fazer mais e melhor.

Tem abertura para aceitar sugestões dos músicos, para mudar o modo como são tocadas as músicas?

Claro que sim. Tenho de gostar e concordar com o que me sugerem, obviamente, mas tenho a sorte de nesta digressão ter um grupo muito aberto nesse sentido. Por vezes, os músicos que vêm da world music e do jazz têm mais dificuldade em assimilar certas sonoridades, enquanto os da pop são mais abertos às novidades, e nesse sentido encontrei um equilíbrio muito bom. No final de cada concerto juntamo-nos sempre para discutir como correu.

E às vezes apontam-lhe erros?

Sim, e não tenho problema nenhum com isso, até é bom que o façam, porque nunca deixo de apontar os erros dos outros [risos]. Mas fazemo-lo sempre com muito bom ambiente, mal saímos do palco, porque é o momento em que ainda está tudo fresco. Depois vamos jantar e está tudo bem.

Concorda quando se diz que o seu último disco tem uma sonoridade mais pop?

Sim, concordo. Este último disco foi propositadamente mais moderno porque, depois de 14 anos a viver em Paris, senti necessidade de fazer algo mais alinhado com a minha época e vivências.

Como reagiram os fãs mais antigos a essa mudança?

Bastante bem, melhor do que esperava. Tinha receio de que em Cabo Verde fossem um pouco mais fundamentalistas, por cantar em inglês e francês, mas passou-se o contrário, com o disco a ser bastante elogiado pela sua frescura. Foi importante para que uma nova geração de cabo-verdianos tenha começado a interessar-se pela minha música. Os miúdos, fãs da Rihanna e da Beyoncé - o que não quer dizer que me compare a elas [risos] - passaram a identificar-se com uma música que já não é só para os pais deles. É bom, porque significa que eu própria estou a rejuvenescer.

A sua música sempre teve muitas outras influências, não se limitando apenas à tradição...

No início sentia um grande compromisso com a tradição e isso percebe-se muito no primeiro disco, mas nos dois seguintes já andei por outros caminhos, do jazz e da world music. E neste último quis mudar novamente. A verdade é que sempre fui uma artista na fronteira da tradição. Tem que ver com a minha forma de ver o mundo. Sou uma pessoa muito permeável e influenciável em relação às coisas boas que me rodeiam.

Viveu em vários países quando era criança, depois mudou-se para Paris. Onde é que entra Cabo Verde na sua música?

Entra porque eu entro. Eu sou Cabo Verde e serei sempre uma artista cabo-verdiana. Até posso fazer um disco que não tenha nada que ver com a tradição do meu país, mas não deixo de ser cabo-verdiana. O que pretendo é trazer sempre uma face diferente à música cabo-verdiana, abrindo precedentes. Para me construir, enquanto artista, tive de subir muitos degraus e espero também deixar alguns para os que vierem depois de mim. Se todos os países modernizam as suas tradições, porque é que não pode acontecer o mesmo com Cabo Verde?

Essa modernização já existe?

Há uma nova geração mais descomplexada, quando comparada com o tempo em que eu comecei. Só tenho 30 anos, mas quando comecei, com 15, já me diziam que cantava muito bem, mas tinha de o fazer como deve ser.

O que é que isso significa?

Devia ser porque fugia um pouco à norma. Houve até quem me dissesse para não inventar. Lembro-me muito bem de quem o fez, porque também é músico. Tem tudo que ver com os diferentes graus de cada um, de interesse, de sofisticação ou de permeabilidade... E a minha função na música cabo-verdiana é essa: contribuir para uma maior abertura, porque ninguém é mais ou menos cabo-verdiano do que eu.

O que a levou a começar a cantar, aos 16 anos?

Aos 16 anos não, que eu canto desde sempre... Comecei mais a sério nessa idade porque foi quando pude, mas lembro-me de logo aos 4 ter pedido um violão à minha mãe.

Quando decidiu, então, que a música ia ser a sua vida?

Não decidi nada porque sempre fui cantora. Lembro-me de ainda criança ir a concertos e sentir-me frustrada por os músicos não saberem que eu também era artista. Isso incomodava-me muito. Quando conheci a Cesária Évora, tinha eu 12 anos, a primeira coisa que lhe disse foi que também era cantora. Ela deu--me conselhos e alguns dos músicos dela disseram-me que talvez um dia ainda tocassem comigo, o que já aconteceu muitas vezes. Isso é uma bênção muito grande.

Já tocou um pouco por todo o lado, muitas vezes com alguns pesos-pesados da música mundial. O que é que aprendeu com essas experiências?

Aprende-se o mesmo que numa tocatina em casa de amigos. Mas já tive momentos inesquecíveis. Ter a oportunidade de cantar com o Bana e com a Cesária Évora foi algo de muito forte. Ou ter cantado com o Charles Aznavour. Ainda há dias, antes de me mudar para Lisboa, fui ver um concerto dele. Fiz questão de me ir despedir dele, por ser mais um ciclo que se fecha.

Estes concertos, em Portugal, podem também ser vistos como o início de um novo ciclo?

Sim, porque estou a encerrar a digressão no local para onde venho morar, o que não deixa de ser simbólico. Venho em busca de qualidade de vida, de mais sol, calor humano e maior proximidade de casa, que é Cabo Verde. Passei 14 anos em Paris, quase metade da minha vida. Precisava de uma mudança e acho que Lisboa me vai inspirar. Talvez para o próximo ano já haja um disco novo, quem sabe.

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